Será que realmente foi uma conquista?

Será que realmente foi uma conquista?

Essa semana tomei conhecimento que um Deputado Federal colocou como grande conquista a rejeição de uma emenda que visava a regulamentação da possibilidade do rateio de despesas (MP 1040/2021 - Emenda 162).

Será que essa é uma conquista para a sociedade ou para uma pequena parte de interessados? Ora, se existe uma indagação sobre a forma da proteção veicular, em especial, sobre a falta de uma regulamentação específica e proteção aos usurários, qual é o sentido de lutar para que não seja formalizada em lei?

Como alertou Rousseau (1983, p.84), quando se trata das questões públicas, não existe nada mais perigoso do que os interesses privados ou particulares, não existe “nada mais perigoso”, por exemplo, “que a influência dos interesses privados nos negócios públicos”.

A associações de socorro mútuo possibilitam a proteção patrimonial de seus associados em um formato solidário e justo, evita que o indivíduo fique preso apenas em um sistema tradicional. Um bom exemplo é o caso dos aplicativos de locomoção e o sistema tradicional dos taxistas, não que estes são eficazes, mas com o surgimento de uma nova ferramenta, fez com que as coisas mudassem!

Vale destacar que as associações recolhem impostos, os devidos a associações civis, possuem sim uma garantia e organização. Trata-se um grupo restrito de ajuda mútua, segue à risca a lei, em específico o Código Civil e Constituição Federal. Se não fossem seguir a legislação, não teriam a autorização de funcionamento e registro do Estado por meio dos Cartórios.

A criação de regras para proteção de quem faz parte deste tipo específico de associação (rateio de despesas ocorridas/socorro mútuo), servirá para dar maior equilíbrio entre associado e associação, bem como evitar condutas lesivas aos participantes por parte dos gestores, além de proporcionar maior transparência e segurança jurídica aos associados.

Nesse sentido, as ações que são contra uma formalização que gere maior equilíbrio e informação é, na minha visão, um verdadeiro retrocesso ou simplesmente a tentativa de proteção financeira de uma pequena parte da sociedade. Qual o sentido de retirar um projeto em que impõe as associações a obediência ao direto a informação, de colocar de forma clara e destacada que não é um seguro empresarial e que realiza entre os associados o rateio das despesas já ocorridas.

Na Constituição Federal de 1988, a liberdade de associação foi tratada no título dos direitos e garantias fundamentais, no seu art. 5º, incisos XVII a XXI, o qual define que é plena liberdade de associação para fins lícitos, que independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal sem seu funcionamento.

Esses atos de colaboração e solidariedade, base do associativismo funcionam como base do regime democrático, nesse sentido pode citar a lição de Tocqueville[1]:

“Nos países democráticos, a ciência da associação é a ciência mãe; o progresso de todas as outras depende dos progressos desta. Dentre as leis que regem as sociedades humanas, há uma que parece mais precisa e mais clara que todas as outras. Para que os homens permaneçam civilizados, é necessário que entre eles a arte de se associar se desenvolva e aperfeiçoe na mesma medida em que a igualdade de condições cresce”

As associações de divisão de despesas ou denominadas de socorro mútuo, fazem com que os associados fiquem em posição de igualdade e que todos pensem na cooperação e solidariedade, além de combater vícios da sociedade moderna como o individualismo. Além das virtudes indicadas acima, o associativismo faz surgir o sustento econômico e caminha para desenvolvimento das pessoas.

A alternativa de associar-se para ratear/dividir despesas já ocorridas exclusivamente entre um grupo, encontrada pelas pessoas com o objetivo de tornar a gestão de seu patrimônio possível, existe há séculos no mundo todo e tem sido realizada em vários segmentos da sociedade. Faz com que grupos minoritários e marginalizados tenham condições para se organizar e cumprir os objetivos que lhes são comuns.

Nesse sentido, podemos dizer que preenche os próprios objetivos fundamentais descritos em nossa Constituição Federal:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

_Além disso, a Constituição Federal também determina o estí_mulo de práticas associativas:

Art. 174, CF - § 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

A finalidade das Associações de Socorro Mútuo é possibilitar a divisão das despesas já ocorridas entre os seus associados, não existe na atividade dessas associações o recolhimento prévio ou formação de fundo que presente a garantia de riscos futuros, essa a ajuda mútua tem como objetivo o rateio das despesas ocorridas e divididas posteriormente.

Na Erística de Shopenhauer, diz sobre a “Ampliação indevida”, o qual a parte expõe o tema de modo mais geral possível para tentar impor sua posição. Como exemplo: é seguro porque ampara uma despesa ocorrida no veículo, seguro porque existe o pagamento de uma mensalidade, seguro porque existe informação das despesas ocorridas a serem inclusas no rateio etc.

Shopenhauer diz que o antídoto da ampliação indevida é a exposição precisa dos pontos e a análise específica de cada ponto, como já exposto na ação, não se pode conceituar um instituto fazendo analogias ou traçando semelhanças, com intuito de tentar configurar a atividade da associação como seguradora, ora, no caso em tela é necessário o estudo aprofundado, para assim verificar cada peculiaridade, peculiaridades que fazem com que as atividades sejam completamente distintas.

Não existe fundamento quando simplesmente faz comparações genéricas, como exemplo: a mensalidade configura um prêmio, as despesas ocorridas indicadas no regulamento é a garantia e transferência do risco, utiliza, neste caso, uma interpretação ampla, genérica e sem consideração alguma ao conceito e natureza de cada elemento citado.

Se generalizarmos, podemos incluir várias atividades em um conceito de contrato de seguro. Exemplo: Comissão de formatura que recolhe os valores para a festa no final de ano seria um seguro irregular, associação de bairro que realiza o rateio de uma despesa ocorrida em sua sede seria também e, por fim, o condomínio que realiza o rateio das despesas comuns também seria um contrato de seguro, pois, existe um Regulamento/Convenção que prescreve as despesas comuns que podem ser rateadas e o morador faz o pagamento.

Nesse caso não é necessária uma regulamentação, as associações já têm a proteção garantida na Constituição Federal, Tratados Internacionais e legislação ordinária. O que tem sido proposto é uma regulamentação do contrato atípico criado pelas associações, deixar mais claro e dar mais proteção na forma de realizar o rateio e proteger os associados que aguardam o socorro.

Cada associação continua livre para criação das regras entre seus associados. O objetivo de uma lei sobre esse tipo de atividade é que não seja confundida com o seguro empresarial (contrato típico e regido por lei específica), evitando qualquer erro daquele que pretenda participar de um grupo de rateio. Isso é até um ponto levantado pelos Corretores, que alguns consumidores filiavam sem saber que não era um seguro.

Atualmente existe a criação de um contrato atípico (não previsto em lei, mas permitido) para definir a forma de amparo e rateio. Destarte, com uma lei, além dessa filiação ser voluntária e livre, terá um regramento mínimo sobre a divisão e forma de amparo.

Não restam dúvidas da legalidade da atividade de uma associação civil que realiza o rateio de suas despesas já ocorridas e da sua distinção do contrato de seguro pelo fato de não existir os requisitos obrigatórios do contrato típico de seguro (prescrito de forma expressa no Código Civil), tudo com fulcro na legislação, doutrina especializada e jurisprudência.

A ação contra a revogação de lei ou projetos que tenham como cerne a garantia de informação ao indivíduo que pretende filiar e da necessidade das próprias associações em ter que deixar claro que não são seguradoras, evitando qualquer tipo de confusão e prejuízo a sociedade, nada mais é que um retrocesso e ataque ao modelo sustentável e solidário criado pela necessidade da sociedade.


[1]Tocqueville, Aléxis de, 1805-1859. A democracia na América: sentimentos e opiniões: de uma profusão de sentimentos e opiniões que o estudo social democrático fez nascer entre os americanos. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.p.136,